Alucinação é uma percepção sensorial sem estimulação externa do respectivo órgão. Em senso restrito, alucinação indica um distúrbio psicótico apenas quando está associada a um grosseiro prejuízo do teste de realidade.
As alucinações devem ser diferenciadas de ilusões, nas quais um estímulo externo é percebido ou interpretado erroneamente, e de processos de pensamento normais excepcionalmente vívidos.
Abordaremos abaixo um caso clínico de alucinações auditivas em idosos.
Alucinações auditivas em idosos: caso clínico
Um paciente de 74 anos do sexo feminino relatava estar “ouvindo músicas que incomodam”. As músicas haviam aparecido há cerca de vinte dias, sendo que em duas semanas, aproximadamente, passaram a importunar a paciente a maior parte do dia.
Ela não sabia a que atribuir o seu início e como explicar o fenômeno, mas tinha convicção acerca de sua realidade. A intensidade de suas manifestações era agravada com o relaxamento e amenizada com o desempenho de alguma atividade.
As músicas eram instrumentais, predominantemente sacras, de tonalidade triste, conhecidas durante a infância e adolescência da paciente. Menos frequentemente ocorriam músicas mais atuais, como também músicas grandiosas, desconhecidas.
As manifestações mais intensas das alucinações auditivas eram localizadas no espaço exterior, com a sensação de compartilhamento por outras pessoas e acompanhadas por tentativas frustradas de amenizá-las com a colocação das mãos sobre os ouvidos.
Quando de intensidade menor estas eram percebidas como vindas de dentro da cabeça e fruto da imaginação. Relatava ainda leve diminuição do humor de início impreciso.
Na história médica pregressa apresentava hipoacusia neurossensorial bilateral e depressão maior em uso de antidepressivo tricíclico, imipramina e benzodiazepínico, bromazepam. Não havia relato de déficit cognitivo prévio e vivia uma vida independente na comunidade.
O exame físico dos aparelhos cardiovascular, respiratório, digestivo e neurológico não apresentava alterações.
O rastreio cognitivo através do mini exame do estado mental estava normal (28/30, escolaridade > 8 anos).
O humor era diminuído, funções cognitivas sem alterações, consciência clara, normoprosexia, pensamento de curso normal com algum conteúdo depressivo, juízo crítico comprometido pela presença da alteração sensoperceptiva.
A rotina básica de sangue estava dentro da normalidade.
O eletrocardiograma mostrava ritmo sinusal regular, com intervalo QT dentro da normalidade.
A tomografia de crânio mostrava apenas atrofia difusa.
O eletroencefalograma (EEG) foi normal.
Principais diagnósticos diferenciais
Os seguintes diagnósticos diferenciais foram considerados:
- Esquizofrenia de aparecimento tardio: o quadro alucinatório não era acompanhado de outras manifestações psicopatológicas que levassem a um diagnóstico de esquizofrenia, não havendo, sobretudo, um prejuízo grosseiro do senso de realidade.
- Depressão psicótica: quando da manifestação do quadro alucinatório, a paciente apresentava apenas leve diminuição do humor, sendo o primeiro muito mais marcante que o segundo. A correção do humor foi acompanhada de apenas discreta melhora das alucinações.
- Histeria: afastada a hipótese de histeria pela completa ausência de outras manifestações conversivas ou dissociativas, pelo tipo de alucinação e da postura da paciente frente às suas queixas, muito distante de uma situação de “belle indifférence”
- Doença factícia com sintomas psicológicos: paciente sempre apresentou relatos coerentes e consistentes de manifestações alucinatórias isoladas, sem manifestações de sugestionabilidade, negativismo, sendo afastada a produção intencional ou simulação de alucinações.
- Síndromes mentais orgânicas:
- Em face dos achados psicopatológicos de clareza de consciência, da normoprosexia, da ausência de desorganização do pensamento, da preservação das funções cognitivas, da ausência de idéias delirantes, da ausência de alterações proeminentes do humor e da preservação da personalidade, podemos afastar as síndromes de: delirium, demência, síndrome delirante orgânica, síndrome afetiva orgânica e síndrome orgânica da personalidade.
- A anamnese, o exame físico, a avaliação neurológica e laboratorial afastaram causas de delirium e causas tratáveis de demência.
- Desordens paroxísticas localizadas como a epilepsia do lobo temporal, podem ocasionar alucinações, independentemente de quadros confusionais. Nesta paciente, o EEG na vigência das alucinações foi normal.
- As alucinações auditivas isoladas, presentes nessa paciente, sem manifestações de intoxicação atropínica, afasta o uso de antidepressivos tricíclicos (imipramina) como a causa das alucinações.
- Alucinose orgânica: quadro alucinatório auditivo persistente sem outras alterações psicopatológicas de monta, na vigência de privação sensorial (hipoacusia), conduz ao diagnóstico de alucinose orgânica.
A impressão diagnóstica foi alucinose orgânica por privação sensorial (hipoacusia adquirida), com a possibilidade de inclusão da depressão como outro fator de risco.
A conduta consistiu no tratamento da depressão e na correção do déficit auditivo com a prescrição de prótese otofônica.
Alucinações auditivas em idosos
Experiências alucinatórias transitórias são comuns nas pessoas sem perturbação mental.
No entanto, quando se trata de alucinações auditivas em idosos, é importante a pesquisa de fatores orgânicos (síndromes mentais orgânicas) e a hipótese diagnóstica de esquizofrenia de aparecimento tardio, depressão psicótica, histeria e doença factícia.
Um quadro alucinatório auditivo persistente sem outras alterações psicopatológicas de monta, na vigência de privação sensorial (hipoacusia), conduz ao diagnóstico de alucinose orgânica.
As alucinações musicais associadas a surdez adquirida ocorrem predominantemente em idosos.
O tratamento do déficit auditivo com a prescrição de prótese otofônica, assim como o tratamento da depressão com o uso de antidepressivos, pode ser eficaz nas alucinações auditivas em decorrência de alucinose orgânica.